domingo, 25 de outubro de 2009

“... porque não sabem o que fazem.”



Recebi um e-mail em francês, com fotos detalhadas e sequenciadas, mostrando desde a compra de animais encarcerados em gaiolas minúsculas, a retirada do cativeiro, morte e manejo em locais imundos, até a venda do "produto" final ao consumidor . É um alerta sobre falta de higiene na preparação de “carcaças” de frangos para aqueles que se alimentam de carne. As fotos foram feitas na China, mas... Senhor! Como podemos viver assim? COMO PODEMOS VIVER ASSIM? Como podemos nos olhar no espelho e seguir vivendo desse modo? Da nossa ignorância, livrai-nos Senhor. Da nossa brutalidade, livrai-nos Senhor. Da nossa dureza, livrai-nos Senhor, porque sucumbimos sob pesado sono, hipnotizados, e nos acostumamos com barbárie de toda espécie e apenas voltamos os olhos para o outro lado! Um dia amorosamente despertaremos e veremos que tudo, incluindo as pequenas células, micro átomos, elétrons, nano-partículas, todos estão plenamente vivos, têm consciência de si e de seu papel no sistema. Tudo está vivo, é sensível e inteligente, e tudo fala, tem histórias para contar, experiências para compartilhar. A maneira como dispomos de outras vidas é insana. Veremos que ao considerarmos outros seres menos que nós mesmos, apenas nos diminuimos, assinando um atestado de profunda falta de atenção, de percepção, de amor e até mesmo de lógica! Nós é que ficamos aquém de onde podemos chegar! Se ainda não conseguimos manter nossa vida neste plano, jogar o jogo do planeta sem nos alimentarmos fisicamente de algum ser, quem sabe ao menos seremos gratos, cônscios de que para que uns fiquem de pé, algumas consciências se sacrificam.

Nós nos consideramos tão magníficos, não é mesmo? E somos! Só que não temos a menor idéia do que significa ser magnífico. Algo, em nós, sabe! Esse "algo", que é todo-consciente, vive tão absurdamente perto e ainda assim, rarissimamente entramos em contato com "ele". Quem sabe, só por hoje, olharei fundo nos belos olhos dos animais um pouco antes de querê-los fritos ou cozidos? E agradecerei pela graça de sua presença sobre a Terra! Mas a carne picada e congelada estrategicamente já não tem olhos, não é mesmo, meu irmão? É só um monte de corações atravessados por um espeto no churrasco do fim de semana! Quem sabe, só por hoje, reverenciarei o esplendor de uma bela alface crescendo ao sol e agradecerei por sua energia, beleza e força, pelo bem que ela me faz, ampliando minha sensibilidade, quando se incorpora ao meu corpo? E olharei para meus irmãos humanos, animais, vegetais, minerais, com amor e gratidão, sabendo que somos uma só existência vestindo fantasias diferentes, camuflados, e que mergulhados em um Substrato Único, aquilo que afeta um, afeta igualmente a todos, e todos estamos no mesmo barco, e como em uma equipe de trabalho, esporte, revezamento, cada um de nós assumiu uma tarefa, uma ponta nesse enorme empreendimento/holograma Terra e resolvemos botá-lo para funcionar. Sabendo que algum forte incidente de percurso enlouqueceu nosso discernimento e começamos a nos devorar uns aos outros sem noção, sem nenhuma noção, Senhor, de que eu sou o outro! Brutalizamos e desprezamos aquilo que formará nossa própria carne! Regateamos o preço, queremos um desconto nos pedaços de primeira, de segunda ou de terceira!

Só por hoje - e que eu possa dizer isto amanhã e depois de amanhã, e depois ainda - envio meu amor a este belo universo “onde vivemos e temos nosso Ser”, com um pedido para que eu possa acordar, Senhor. Que eu possa ver além dos disfarces, das formas diferentes da minha, sorrir para a alma oculta por outras cores, outras plumagens; que eu possa ouvir as vozes de todos os seres, compreender sua linguagem, receber seu trecho da grande mensagem e conversar mansamente com cada um; que eu possa, integrada, acariciar sem medo a Terra com minhas mãos nuas, e como as crianças, sentar-me à vontade no conforto deste chão, e receber em mim o sol, o vento e a chuva, reverenciando o tecido da vida no qual sou e estou.


Maria Helena, 25 de outubro de 2009

NO ÔLHO DO FURACÃO



A noite desceu em meio a um vento úmido que crescia. Entramos na casinha aquecida onde o fogo maduro era um coração vivo dentro do fogão à lenha. Estávamos molhados, enlameados, exaustos e perplexos pela lida do dia, pelo milagre da multiplicação dos peixes no lago, agora vazio, os peixes compartilhados, muitos passando a residir temporariamente no pequeno laguinho Krishna. Impossível, ali, era saber onde começava e onde terminava o espírito de nós, homens e mulheres deste planeta, e a substância do barro da Terra.
A água quente da serpentina que atravessa o fogão chegou ao chuveiro e caiu como uma bênção sobre nossos corpos calados. O dia havia se preenchido de tal intensidade, espesso como o barro que tudo ocupa, não deixando espaço algum para devaneios. Apenas o eu presente, decidindo, providenciando, em união, compaixão e gratidão profundas. Nunca víramos nada como aquilo antes, nenhum de nós, mas as crianças trocaram o susto e o cansaço pela alegria de trazer peixes tão grandes e tão belos para o abraço, no centro do peito, maravilhadas pela beleza daqueles seres, pela descoberta, pela coragem e pela vitória. O grande lago estava assoreado pelo excesso de chuva, suas paredes despencando, ameaçando romper a barragem, o que causaria um desastre e tanto. Foi preciso esvaziá-lo aos poucos. Das dez pequenas e belas carpas japonesas coloridas iniciais, compradas no Aquário do supermercado Angeloni e transportadas para o sítio em um saco plástico, encontramos centenas, milhares, de todos os tamanhos, ao lado de incontáveis carpas-capim! Quem se aventurava a entrar na água ficava com barro quase até a cintura, arrastando-se em câmera-lenta em um esforço limítrofe para vencer a prisão espessa do lodo e atravessar o lago de margem a margem, ajudando a recolher os peixes. Do lado de fora, o encaminhamento rápido para a preservação das vidas. E quando, por fim, a noite caindo, o último peixe resgatado, demos por concluída a tarefa, a tobata seguiu ligeira morro acima com sua carga preciosa, uma caixa d’água cheia de peixes vivos, preferivelmente para ocuparem um açude em outro sítio. Vitor levou alguns vizinhos na carroceria da camionete, também carregados de peixes, até suas casas. Lavei no tanque o macacão-com-botas-pantaneiro, o coração junto com os peixes, agradecida, em conversa silenciosa sobre os possíveis destinos que agora se lhes abriam, uma vez que não mais tínhamos condições de mantê-los todos ali, “só pra bonito”, como diz o povo da região, em função de mantermos animais lindos e saudáveis no sítio apenas pelo prazer de vê-los viver, pelo privilégio da convivência, uma vez que somos vegetarianos. Quando Vitor voltou era noite. Abri para ele a porteira, e a chuva já caía, e o vento frio se encorpava.
Tomamos uma refeição quente. Puxamos nossas cadeiras para bem perto do fogo. Junto, a cestinha com as linhas para crochê. O rosinha claro para o gradeado e o violetinha para ser passado, que nem fita, através do gradeado, formando um quadriculado rosa/violeta bem delicado. Direto da cozinha do sítio para cobrir a almofada do divã do consultório! O calor do fogo e o crochê preencheram minha alma com suavidade, enquanto do lado de fora a chuva e o vento, unidos, já chicoteavam os arredores. Vitor subiu para se deitar e a grande tempestade começou a cair.
Acomodei o crochê na cestinha, desliguei o laptop que tocava mantras com um leve sotaque chinês e reuni velas e fósforos sobre a mesa, caso fossem necessários. Apaguei as luzes para melhor acompanhar o espetáculo no céu. Como a casa tem janelas envidraçadas, literalmente, por todos os lados, deixei-me ficar como que em um certo epicentro, no meio da loucura dos raios, relâmpagos e trovões que recortavam o céu violeta-escuro. Os clarões se abriam em espinhas de peixes brilhantes e explodiam a torto e a direito numa furiosa manifestação de intenso poder. E o sopro de Deus varreu tudo em volta! E começou um barulho forte, cada vez mais forte no telhado, nas paredes de madeira da casa, nas janelas de vidro. Pedras de gelo enormes estavam despencando do céu, rasgando as folhas novas da confusa primavera, os pêssegos novos, os abacateiros transplantados, os canteiros de cheiros verdes, a gloriosa floração das pitangueiras e das limas da Pérsia! A casinha ficou plantada no meio do branco. Até que tudo foi serenando, a chuva intensa, média, depois suave e contínua seguiu noite adentro, permeando nosso sono ao lado da janela.
Sonhei que fazíamos esta travessia, Senhor, navegando numa casquinha de noz sobre as ondas revoltas de um imenso oceano, sob um céu negro varrido pela fúria dos ventos, dos raios e trovões. Mas Tu, Senhor, Tu eras a barca, e seguravas nossas mãos! Havia força, clareza e, sobretudo, paz. A mente vazia de pensamentos e o coração imenso. Tu eras a mente e eras o coração. E assim unidos, navegamos firmemente, sempre mais adiante, atravessando o abismo em direção a um novo Céu e uma nova Terra, guiados por Tua brilhante Estrela.
O dia, por fim, amanheceu.

Maria Helena,
São Pedro de Alcântara, 24 de outubro de 2009