terça-feira, 14 de dezembro de 2010

De olhos bem abertos


Amanheceu o dia e olho, luz na face, porta afora, para o mundo refletido do meu interior, de minha pequena sala de projeção particular, dessa caixinha compacta, espaço não-local de informações, túnel intercomunicante que guarda os segredos dos universos, universo múltiplo que Sou, único Centro a ser desvelado, sintonizado. Estou na soleira da porta, no limiar, ora totalmente imersa na claridade, ora voltando para registrar aquilo que esqueço quando desligo o projetor. A Fonte é sempre cristalina. A caverna se abre para novos mundos. O espaço interno tem muitas moradas, estações onde minha pequena nave atraca, pernoita, permite-se recarregar. Somos e estamos em trânsito, e no fluxo dissolve-se a corporalidade atribuída à experiência nos recintos, entre quatro paredes, no quadrado, no beabá da existência física linearmente codificada, em meio à pressão da chamada vida dos outros, autoridade dos outros, escondirijo de Mim mesma. Impossível corporificar o cambiante Fluxo Vasto. Amanheceu, me desvencilhei e desadormeci.

Palavras são palavras, querida, mas em sua liberdade, a Realidade extrapola cada uma, mesmo quando as unimos criativamente. De certa forma, se você não conhece o estado por trás delas, tornam-se parte da armadilha. Além do convencionado há uma nota, um timbre, um certo ar de montanha, montanha muito alta, que amplia o peito e dissolve os limites entre essas coisas externas que nos vestem e separam, e nos tornamos receptivos, unidos e nus. Há esse pano de fundo conectivo comum. Por isso peregrinamos às montanhas físicas do planeta, em busca de algo que replique um pouco a lembrança desse ar, que nos desprega da cola hipnótica das emoções humanas, perdas e ganhos, dos acontecimentos seqüenciais. Há uma cadência, concatenamento, uma sincronicidade, um elo não teorizado, uma surpresa, um conhecimento, reconhecimento, integração, pertencimento, estado de amor inerente re-encontrado. Há alimento. Que, à moda de porta, pode apenas ser sugerido, através da palavra, como estímulo à intuição.

Céu interior, profundo mar alado subterrâneo e a arte de mergulhar... Estado de mergulhamento e desadaptação... Através dessas correntes de águas celestes rompemos os protocolos, a programação, a inserção do foco na posse do concreto como fonte de satisfação, caminho que quanto mais é percorrido mais nos leva para longe do êxtase. A porta segue aberta, mas para vê-la ha que se inverter o olhar. Os olhos, quando abertos, olham para dentro. Quando se começa essa inversão, vai se tornando cada vez mais irreversível a travessia. Toda imagem simbólica vai, então, abrindo portas e janelas em meio ao burburinho, em meio às ilusórias relações de causa e efeito plantadas na mente, portas para o incomensurável, para o centro da mandala. Aqui também é um outro lugar, outros lugares. Você, eu, somos o frescor da montanha, somos pessoas renováveis, ainda não descobertas, outros-algos-além-de-pessoas, muito além da definição. Sustentado este estado, libertando-nos da perturbada, complicada versão mascarada, do modelito aprisionado adotado como veículo, como seres simples, leves, alegres que somos, através do fluxo do silêncio passamos a expandir a mais cristalina e irradiante manifestação. Pouco, pouquíssimo cabe no embornal da palavra se olhos e ouvidos não estão afinados com o coração. Mas a orquestra, a sinfonia do Real segue, em pleno concerto a um passo, a uma respiração daqui.

Acordei e a porta estava aberta. Talvez tenha encontrado uma chave enquanto dormia.

Florianópolis, manhazinha fora do tempo em 14/12/2010

Maria Helena