domingo, 25 de outubro de 2009

NO ÔLHO DO FURACÃO



A noite desceu em meio a um vento úmido que crescia. Entramos na casinha aquecida onde o fogo maduro era um coração vivo dentro do fogão à lenha. Estávamos molhados, enlameados, exaustos e perplexos pela lida do dia, pelo milagre da multiplicação dos peixes no lago, agora vazio, os peixes compartilhados, muitos passando a residir temporariamente no pequeno laguinho Krishna. Impossível, ali, era saber onde começava e onde terminava o espírito de nós, homens e mulheres deste planeta, e a substância do barro da Terra.
A água quente da serpentina que atravessa o fogão chegou ao chuveiro e caiu como uma bênção sobre nossos corpos calados. O dia havia se preenchido de tal intensidade, espesso como o barro que tudo ocupa, não deixando espaço algum para devaneios. Apenas o eu presente, decidindo, providenciando, em união, compaixão e gratidão profundas. Nunca víramos nada como aquilo antes, nenhum de nós, mas as crianças trocaram o susto e o cansaço pela alegria de trazer peixes tão grandes e tão belos para o abraço, no centro do peito, maravilhadas pela beleza daqueles seres, pela descoberta, pela coragem e pela vitória. O grande lago estava assoreado pelo excesso de chuva, suas paredes despencando, ameaçando romper a barragem, o que causaria um desastre e tanto. Foi preciso esvaziá-lo aos poucos. Das dez pequenas e belas carpas japonesas coloridas iniciais, compradas no Aquário do supermercado Angeloni e transportadas para o sítio em um saco plástico, encontramos centenas, milhares, de todos os tamanhos, ao lado de incontáveis carpas-capim! Quem se aventurava a entrar na água ficava com barro quase até a cintura, arrastando-se em câmera-lenta em um esforço limítrofe para vencer a prisão espessa do lodo e atravessar o lago de margem a margem, ajudando a recolher os peixes. Do lado de fora, o encaminhamento rápido para a preservação das vidas. E quando, por fim, a noite caindo, o último peixe resgatado, demos por concluída a tarefa, a tobata seguiu ligeira morro acima com sua carga preciosa, uma caixa d’água cheia de peixes vivos, preferivelmente para ocuparem um açude em outro sítio. Vitor levou alguns vizinhos na carroceria da camionete, também carregados de peixes, até suas casas. Lavei no tanque o macacão-com-botas-pantaneiro, o coração junto com os peixes, agradecida, em conversa silenciosa sobre os possíveis destinos que agora se lhes abriam, uma vez que não mais tínhamos condições de mantê-los todos ali, “só pra bonito”, como diz o povo da região, em função de mantermos animais lindos e saudáveis no sítio apenas pelo prazer de vê-los viver, pelo privilégio da convivência, uma vez que somos vegetarianos. Quando Vitor voltou era noite. Abri para ele a porteira, e a chuva já caía, e o vento frio se encorpava.
Tomamos uma refeição quente. Puxamos nossas cadeiras para bem perto do fogo. Junto, a cestinha com as linhas para crochê. O rosinha claro para o gradeado e o violetinha para ser passado, que nem fita, através do gradeado, formando um quadriculado rosa/violeta bem delicado. Direto da cozinha do sítio para cobrir a almofada do divã do consultório! O calor do fogo e o crochê preencheram minha alma com suavidade, enquanto do lado de fora a chuva e o vento, unidos, já chicoteavam os arredores. Vitor subiu para se deitar e a grande tempestade começou a cair.
Acomodei o crochê na cestinha, desliguei o laptop que tocava mantras com um leve sotaque chinês e reuni velas e fósforos sobre a mesa, caso fossem necessários. Apaguei as luzes para melhor acompanhar o espetáculo no céu. Como a casa tem janelas envidraçadas, literalmente, por todos os lados, deixei-me ficar como que em um certo epicentro, no meio da loucura dos raios, relâmpagos e trovões que recortavam o céu violeta-escuro. Os clarões se abriam em espinhas de peixes brilhantes e explodiam a torto e a direito numa furiosa manifestação de intenso poder. E o sopro de Deus varreu tudo em volta! E começou um barulho forte, cada vez mais forte no telhado, nas paredes de madeira da casa, nas janelas de vidro. Pedras de gelo enormes estavam despencando do céu, rasgando as folhas novas da confusa primavera, os pêssegos novos, os abacateiros transplantados, os canteiros de cheiros verdes, a gloriosa floração das pitangueiras e das limas da Pérsia! A casinha ficou plantada no meio do branco. Até que tudo foi serenando, a chuva intensa, média, depois suave e contínua seguiu noite adentro, permeando nosso sono ao lado da janela.
Sonhei que fazíamos esta travessia, Senhor, navegando numa casquinha de noz sobre as ondas revoltas de um imenso oceano, sob um céu negro varrido pela fúria dos ventos, dos raios e trovões. Mas Tu, Senhor, Tu eras a barca, e seguravas nossas mãos! Havia força, clareza e, sobretudo, paz. A mente vazia de pensamentos e o coração imenso. Tu eras a mente e eras o coração. E assim unidos, navegamos firmemente, sempre mais adiante, atravessando o abismo em direção a um novo Céu e uma nova Terra, guiados por Tua brilhante Estrela.
O dia, por fim, amanheceu.

Maria Helena,
São Pedro de Alcântara, 24 de outubro de 2009

2 comentários:

Unknown disse...

Maria,
tantos sonhos!
Fico feliz por tudo que expressas deste individual e coletivo.
Com amor e profunda gratidão.
Cristina

Dulce Fërraz disse...

Oi minha querida,
Quando "te" leio, fico em um estado de profunda gratidão por poder fazer parte... por ter sido merecedora de ser tua irmã - biológica e em Luz. Grata por me mostrar, de forma simples, a profundidade da vida.
Um grande beijo em teu coração,
Dulce