Cá estou eu dedilhando este mosaico. Há uma conversa, uma parceria com o inteligente sentimento das coisas, das formas, das cores, cujos tons, quando organizados de certa maneira, criam estados de espírito, músicas. Temos também a felicidade de encontrar essas músicas inusitadas quando obedecemos ao delicado impulso da inspiração, quando ela nos visita, nos convida a sentar e a escrever, a debruçar o olhar através do limiar de separação dos mundos, nossa nau ultrapassando as últimas barreiras colonizadas desse vasto oceano subjacente, desse éter, ar, aroma, desse impalpável campo imenso de onde tudo brota, contemplando idéias, insights provenientes desse mar aparentemente impreciso, recebendo as ondas desse mundo, deixando-as trazerem, por instantes, suas límpidas águas até as areias de nossas praias. A criação se faz, então, em conjunto, material soprado em nossas velas, e nós, ouvidos surdos para o burburinho humano, navegamos perseguindo esse inefável som. É preciso colocar mais verde, aquele da pastilha de vidro chinesa, aquele tom, e repeti-lo de novo mais acima, e ainda mais uma vez.
Estamos todos e tudo indissoluvelmente ligados. As pastilhas “Málaga”, importadas da China, que ainda se obtém em pronta entrega, só pagar e pegar no depósito da loja, uma, duas placas, não de todas as cores, pois algumas delas estão esgotadas e é preciso esperar o próximo carregamento que não se sabe dizer ao certo quando virá. Mas existem várias outras, infinitas possibilidades fabricadas por aqui mesmo, as de cores mais sólidas, de pigmentos mistos, algumas iridescentes, e as madreperoladas. Olho os meus dedos cortados. A quantas mãos se faz este trabalho? As pastilhas viajadas, as fábricas, os fabricantes, os pequenos fabricadores, operários de baixo custo, custeando meu mosaico. A velha mesa de fibra da Vó Lila, a excelente torques com roldanas, o Vitor que conhece as lojas de ferramentas melhor do que eu e que me ajudou a descobrir essa torques aqui mesmo em Florianópolis, os vídeos-aulas do Youtube, o criador do Youtube, o meu laptop cor de rosa que alguém um dia concebeu e eu comprei naquela loja do Beiramar Shopping. As amplas janelas de minha sala e a luminosidade que passa por ela durante o dia, os passarinhos cantando lá fora, a chuva que tem caído, o vento que tem soprado, o frio que gela meus pés desencarnados e que eu engano esfregando um no outro diante do aquecedor, o João chegando da faculdade de cinema, seu beijo, seu observar silencioso, nossa sopa de tofu, seu videogame, nossa parceria pela madrugada enquanto contemplo a grande tapeçaria branca e preta com a face de Buda, presente cheio de presença, tudo me lembra que sou apenas essa mão de dedos cortados, mas meu corpo é feito de todas essas personalidades e suas falas, sem o que, não há mosaico. Pitucha, a gatinha da casa, sempre a meu lado, com seu olhar impressionante e suas muitas vozes, certamente compõe o clima, dá tom ao silêncio onde mergulho. A deusa do fogo sobre a lareira, fabricada em Bali, de olhos fechados em meditação, a face da serenidade, enquanto lixo algumas tesselas em meio à poeira que involuntariamente respiro, nada pode ser excluído, tudo é parte da sintonia, sinfonia da qual participo, que catalizo, de alguma forma alquimizo e exprimo.
Amanheço o dia, faço a cama, tomo o café passado pelo Vitor. Vou ao banco, ao supermercado, cozinho o arroz e o feijão, o inhame, uso o alho do sítio. Varro o quintal, recolho os galhos que o vento quebrou, observo as centenas de pitangueirinhas que tem brotado e as ameixeirinhas que insistem em atapetar os canteiros, lavo os cabelos, pinto e bordo como uma pessoa comum. Por isso entendo a gente do mundo. Quando sou psicóloga, agradeço ao que me ensinam, à parte que serve a mim e ao que vejo que serviu ao outro. Os amigos me enviam notícias, trocamos e-mails, uma rede que presta um serviço surpreendente, replicando a “outra” rede que fica logo aqui, do outro lado. Há Amor em toda a parte e não há como estar fora dele. Há inteligência e informação em tudo que vive, e tudo vive. Eu Sou Algo em meio a toda essa Vida. A arrogância, a vaidade, o orgulho humano são do tamanho de nossa ignorância humana. Não há produção alguma independente. Tudo é interdependente. Ao assinar a autoria, lembre-se de incluir a paisagem.
Maria Helena
Florianópolis, 23 de junho de 2010, véspera do aniversário do Yasha
Nenhum comentário:
Postar um comentário