sábado, 31 de dezembro de 2011

Um planeta chamado Antártica

Então, Antártica, aqui estamos nós, prontos para sentí-la, ousar tocá-la em íntimos recessos, para além de suas alvas vestes. Há em nós uma alegria, um sentimento de ter recebido o presente perfeito, um pouco, talvez, como quando ainda criança, ter ganhado de Papai Noel aquele órgão branco!  Sim, é uma boa imagem, pois há música no silêncio da Antártica, sons que causam em nós impactos profundos!



Atravessando a Passagem de Drake, no início da noite fiz a subida solitária ao convés molhado e escorregadio do navio, a mão fortemente fixa ao corrimão, as ondas imensas quebrando-se contra o barco, o negro mar desafiador, vastidão inquieta sem fundo... Tinha que estar ali sozinha diante daquela voracidade, contemplando a faixa estreita que se estende entre o medo e a coragem, para constatar que nada tem realmente tanta importância, e que entre tantas fantasias de morte, é belíssimo o poder que se move naquele tipo de vida. O foco no medo cria em torno de si a doença, mas o olhar desapegado sente apenas o intenso fluxo de energia, pois que ela se configura de muitas formas. Confiança. Há que se atravessar a noite escura para se chegar ao alvo-mundo, e os pequenos e grandes espíritos naturais do mar, os seres elementais das águas, os condutores das tempestades e guardiães da área representam bem seu papel na recriação do mito. Agradeço a sincronicidade, a conjunção de fatos que ali me trouxe, peço permissão para seguir adiante e acolho a paz em meu coração.

Na prática, houve os que passaram muito mal, vomitaram, não saíram da cama. Havia certa tontura e um estado de confusão/transição. Era preciso mirar bem o lugar onde se queria chegar e num impulso lançar-se em direção ao alvo e segurar-se rapidamente em algo ou alguém, antes que se esborrachasse no chão, enquanto o navio subia e descia no intenso movimento das ondas. Na hora das refeições, por vezes era preciso decidir entre colocar o alimento na boca ou segurar pratos, copos e talheres que escorregavam de um lado para o outro sobre a mesa. Mas eventualmente o mar acalmou-se, as águas pouco a pouco serenaram e o Espírito moveu-se com domínio e graça, confortável em sua própria casa!

Aberta a escotilha de minha cabine para a imensidão, e por ela desfilavam as esfinges “esculpidas” nas rochas que do alto das montanhas guardam o território santo. Há muito mais para se ver por entre as montanhas da Antártica! O mar, cada vez mais coalhado de gelos branco-azulados de todas as formas e tamanhos. O Eterno se manifestando nos ciclos do gelo e em seus peculiares tons de silêncio. As focas, emitindo seus chamados intensos, profundos, vozes cujos timbres e entonação convocam atenção e reverência. As orcas, mergulhando à direita do navio. Os pingüins, com sua delicada beleza amorosa, demonstrando toda sua tenacidade, carregando em seu bico, uma a uma, as pedras usadas na construção dos ninhos. Há uma perplexidade, uma descontrução na rede de significados que armazenávamos, e novos canais são abertos por onde, sem qualquer possibilidade de comparação ou julgamento, silenciosamente passávamos a receber informação através desses novos sentidos. As águas transparentes com suas belíssimas água-vivas e seus cardumes de krill. E por sobre tudo, preservando o campo, sustentando o tom-cristal do lugar, Grandes Devas expandem suas ofuscantes auras branco-azuladas. 

O barco Zodíaco desliza por entre os icebergs. Silêncio. Nada me perturba, não há dúvidas. Há a subida da montanha e o som amassado das botas afundando na neve fofa/quebradiça. Num dia faz sol e no outro neva. Não há dúvidas, somente mais montanhas brancas e os gelos flutuantes azuis, e os grandes pássaros atravessando o céu, por sobre o mar onde eventualmente mergulham ou pousam, na imensa liberdade do extremo frio. O ar é fino e penetrante. Não há divisão, não há dúvidas. Há como que um Eu Sou em ação, de onde os pensamentos aturdidos, impotentes, despencaram. A paz guia meus passos, ilumina meu coração e conduz-me direta e inevitavelmente ao topo da montanha de mim mesma. Não há dúvidas. Em tudo, 360 graus, em toda parte e partícula, a atmosfera exala Consciência, Presença. Nada é pessoal ou impessoal, não se pergunta ou se explica, se dentro ou fora... Somente o Ser prevalece na ampla branquidão. Na coesa paz desta cristalina simplicidade, meus perplexos olhos calados, recuam para um patamar mais interno e mais alto e fixam-se no incomensurável olhar cósmico, oceânico, branco-azulado de Deus. Eu Sou a paisagem e cada ser destes mundos... Eu Sou a energia de que é feito cada fio da tessitura da estrutura do Cenário... A indivisa alegria é um fogo exuberante na gruta de meu recém-unificado coração.
Parte minha definitivamente ficou na Antártica e parte da Antártica hoje faz parte de mim.

Maria Helena
Novembro de 2011

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