domingo, 22 de novembro de 2009

E chove


Um texto de Março de 2009:


Cá estou eu, nesta sexta-feira de Deus, aqui na minha 'Ohana, em meio a esta chuva contínua que tem estado entre nós pelos últimos quatro meses, causando acidentes memoráveis e dolorosos por todo o sul do País e que nos leva a comungar de modo mais profundo com o elemento água, trabalhando em nós profundo desapego. Tudo verde, tudo úmido, tudo escorregadio. Vestidos com macacão com botas pantaneiro, casaco impermeável com capuz, chapéu de palha de abas largas revestido com um saco plástico, de modo que os pingos caiam longe do corpo, nada nos impede de caminhar à vontade pelo lugar todo, deixando a chuva fazer parte da paisagem, verificando os canais que foram abertos ao longo do campo para que as águas sejam drenadas em direção ao lago. A terra já não absorve uma gota sequer e as águas, rápidas, rolando canais abaixo, reverberam alto como pequenas cachoeiras, ou valentes riozinhos afluentes, mergulhando no lago dos patos que está realmente cheio. Corremos para desentupir o cano que funciona como ladrão do lago que estava obstruído por folhas, restos de água-pés e galhos, pois as águas haviam invadido a ilha central, desbarrancando as laterais e quase emendando esse lago com o vizinho Laguinho Krishna. As cercas, despencadas, permitindo aos patos, marrecos e gansos pastarem por toda parte, inclusive no quintal de nossa casa. Chamei por Maria Antônia, um pouco apreensiva, pois em outra enchente ela havia sido levada pelas águas e, meio que pelo faro, intuição, amor telepático, saímos vagando, procurando por todo lado até encontrá-la rio abaixo, debaixo da ponte do Celso. Mas hoje, reconhecendo minha voz, ela veio comer ali na beirinha, enquanto eu falava pra ela coisinhas lindinhas, minha tartaruguinha querida! Maria Antônia é uma espécie de filha que adotei, uma tartaruguinha muito gente-fina, super bonita, uma Tigre d'Água Americana que cresceu no apartamento de um amigo, em Florianópolis, e que me foi confiada para que tivesse uma vida na natureza. Ela tem uma marca vermelha perto dos olhos, herança de sua raça, que chama atenção das pessoas da região. Hoje em dia, em meio a toda essa loucura do clima, mora no lago só mesmo porque quer. Às vezes ela 'foge' e vai passear no Laguinho Krishna. Depois volta. Tem uma memória estupenda e conhece muito bem os caminhos, principalmente os atalhos. Penso que se eu fosse ela, também ia querer passear no Laguinho Krishna, onde o astral é muito melhor, é cheio de sapinhos, lavadeiras, bichinhos mil, águas mais claras onde crescem lótus e água-pés que são uma bênção. Quem não ia querer dar uma escapada?


E chove! Esta temporada forçada de excesso de chuva e frio fora de época tem feito coisas, alterando expectativas. O feijão plantado, na sua maioria, amarelou, melou e morreu. Ainda não plantamos o arroz, e é capaz de não dar mais tempo, nem o milho... Muita água. Por outro lado, para eu não virar uma reclamona, tem sempre algumas maravilhas em curso, como as bananeiras fazendo cachos, os limoeiros sicilianos imensos, os abacateiros enormes, as parreiras cheias de uvinhas... As cebolas, apesar de toda a chuva, estão quase na hora de serem colhidas. Isso, para a gente nunca acreditar na limitação! Desapegamo-nos de algumas coisas e dirigimos nosso olhar à outras. Temos colocado na terra tudo quanto é semente de todas as frutas que comemos. Temos plantado até sementes de maçãs, daquelas que compramos à quilo no supermercado. Algumas delas já estão bem crescidas. E embora nos digam que jamais darão frutos, nos recusamos a acreditar nisso. Comemoramos seu crescimento, suas folhas que rebrotam sempre num tom de verde muito bonito. Vejam as sementes de limas-da-Pérsia, compradas assim, nas mesmas condições, e que coloquei dentro de um vaso de violetas, no consultório. Elas germinaram e as colocamos na terra quando ainda eram tão pequenininhas que a nossa ajudante, Janete, só ria, achando um tremendo absurdo darmos tanta atenção para aquelas plantinhas frágeis com cerca de quatro folhinhas, e que por certo morreriam antes de se adaptarem. Hoje são quatro formosas arvorezinhas que dão limas amarelinhas, deliciosas... No início, plantamos cenouras vindas dessas sementes violadas que se compra no comércio, cujas plantas não espigarão, para que sejamos obrigados a comprar novas sementes da multinacional, ficando, assim, cada vez mais à mercê dos donos da Matrix, matriz da 'tecnologia'. Pois não é que em dado momento, acreditem, um pezinho de cenoura magicamente espigou e ficamos com o coração na mão! Cheinho de flor, deu uma bacia enorme de sementes, que colhemos e replantamos. Agora temos sempre muitos pezinhos de cenoura espigados com milhares de sementes! A vida multiplicando-se em meio a esse caos aparente. Há todo um barulho do raciocínio em cima de teorias, mas no silêncio da observação surge um amor que confia na vida e que desperta a semente.


E chove!
Às vezes a chuva vem do oeste e a gente pensa que o vento vai, enfim, levá-la embora. Mas, aí, ela faz meia volta e vem de leste. Acaba a reserva de água de um lado e ela vai se abastecer no outro. Penso, então, que não dá para esperar, e se não temos mais sol, let's sing in the rain! Levanto-me para esticar as pernas e dançar um pouco: gracias a la vida que me ha dado tanto! O fogão à lenha esquentando essa mistura de sala, copa e cozinha. Almoçamos ervilhas com batatas e massinha no alho, Vitor foi fazer a siesta e estou aqui, acompanhada deste laptop cor-de-rosa, una computadora, mocinha, do sexo feminino, como diz o Paulinho, que toca esse sonzinho maneiro, onde teclo, onde estudo astrologia - como é bom - enquanto chove. E constato que a nossa ajudante, Janete, teve medo da chuva: já passou da hora e ela não veio trabalhar. Há tanto por ser feito, mas nessas circunstâncias vemos a importância de praticar a entrega, a aceitação, e como diz o povo, colocar as coisas nas mãos de Deus! Ainda hoje fomos pela trilha, caminhando mata adentro, até a beira do rio que corre lá no fundo. Há um tempo atrás havíamos assentado algumas pedras no chão, próximo da margem, de forma bem simples para não destoar, não machucar muito a energia do lugar e ainda termos um chão mais firme onde pisar. Agora, o rio encorpado, crescido, indomável, passava por cima da represinha, das margens, seguindo deu próprio curso e destino, independente de nós e de nossas pedras colocadas na margem. Um espetáculo forte, lindo! Então, é preciso reverenciar a vida, trabalhar com afinco, traçar objetivos claros mas sem qualquer apego, abertos à co-criação e à possibilidade de mudança de itinerário, saber a hora de abrir mão da agenda e pular fora. Por isso mesmo, independente do tempo, eu venho para o sítio, planto, converso com os carneiros, morro de rir dos gansinhos adolescentes, tão lindos, fico de namorinho com a Maria Antônia, que toda charmosa, mergulha e volta, e tudo está bem no meu mundo!


E chove!


São Pedro de Alcântara, 20 de março de 2009


Retorno, após uma noite de chuva intensa, para registrar a morte da minha menina Maria Antônia! A violência das águas formou um vórtice muito intenso no ladrão do lago que sugava as águas aos borbotões. Ela foi tragada pela cabeça, ficou presa e não conseguiu mais nadar para fora! Estás agora unificada à tua alma-grupo, minha querida! Em algum universo paralelo vives, agora, sem a forma de tartaruguinha que vestiste para que eu pudesse aprender que gente e tartaruga podem viver um amor sem igual! Atravessaste a linha e entraste no grande mistério! Contigo estão a Betinha, o Léo, a Lindinha, a Preta e o Ferdinando. Ferdinando, o pai de todos os carneiros desta 'Ohana, que já velhinho, fui levar-lhe um agrado em sua casinha, aquele capim cheiroso que ele tanto gostava, e uma bacia d'água, porque já não conseguia caminhar. Conversei com ele, acariciei sua cabeça, agradeci pela bênção de sua presença, pelas impagáveis aulas de olhar-no-olho-lindo-do-carneiro-e-entender-tudo, e quando saí de lá, ele deu apenas um passo cambaleante até a porta, atrás de mim. Voltei-me e ele olhou-me intensamente com seus puros olhos de carneiro e eu soube que era a despedida. Meu coração humano não queria mesmo passar por isso, mas a Alma que mora em meu coração pode sentir a paz, que como um halo, exala desses momentos. E exulta pela bela festa que vocês estão fazendo nos verdes prados do Senhor, no outro Laguinho Krishna, nessa outra 'Ohana que fica aí desse lado.


Ainda chove.


Maria Helena
São Pedro de Alcântara, 21 de março de 2009.

2 comentários:

Unknown disse...

Maria,

li agorinha e senti como se lá estivesse.
Coloquei a foto da Maria Antônia na minha tela aqui de casa pra apreciá-la mais um pouquinho.
Bjo e abraço GRANDE, igual ao seu coração.
Cristina

Berê disse...

Ahhhh, eu estava tão feliz lendo sobre a Maria Antonia... mas...

Há poucos meses, minha cadela grandona boxer mestiça, matou a Muchinha, aquela gatinha que o João levou a filhota, Durou 18 anos e ainda estava esperta.
Tbm meu coração humano sofreu.
Sabe que a ouço miar ? é de impressionar.
E lá vamos nós carregando nossas perdas e ganhando vidas novas.
Beijos.